19.4.20

CARTA A UM ANÓNIMO





Ouve lá, ó minha besta!

Porque não aproveitas a vida que te resta

E procuras esse improvável lugar

Onde ainda exista alguém que te queira aturar?



Aproveita e, quando lá chegares, faz as contas!

A sério! Que tal enfrentares o que desmontas?

Conta os dias todos que viveste e que nem sequer mereceste;

Conta o que podias ter sido se viver fosse mesmo o que tivesses escolhido;

Conta quem serias tu agora,

se em vez de inútil, se em vez de uma vida fútil,

Tivesses, por esta vida fora,

Escolhido ter propósito, e não essa tua vida-depósito

E conta! Conta quantas vezes podias ter sido feliz

A seres qualquer coisa, tudo, menos esse infeliz

Sim! Tu e essa tua mania

De viver uma patológica fobia,

Onde o mundo todo te deve

Onde o mundo inteiro é peso e só tu és leve

Onde é tudo pequenino e tu tão gigante...

Mas, mal de ti, tão ignorante,

Que fazes de tudo para não te lembrares

Que vives a vida no pior dos lugares:

Um lugar escuro, bafiento e mesquinho,

Onde ninguém te quer e tu estás sempre sozinho.

E até esta coisa maravilhosa que é viver

Te passa ao lado, sem te querer conhecer.

É que, sabes? Viver não é para quem é fraco!

Viver é muito mais do que o teu whisky e uns quilos de tabaco.

Vá Anónimo,

Agora que a vida se te acaba,

E que à morte ninguém aldraba,

Faz as contas! Vá! Faz as contas!

E diz:
Tens as tuas malas vazias prontas?



7.4.20

TRANÇAS

Tenho uma saudade antiga
Bem mais velha do que a tua partida.
Podia até ser minha amiga,
Se não me cuspisse fel na ferida.
É tão velha esta saudade
Que tem na dor mais anos do que idade
É que a minha saudade começou
Quando tu ainda choravas a saudade do avô
E eu senti, sem conhecer,
saudades da avó que foste, antes de ele te morrer.
Depois, a minha saudade cresceu
Para um lugar que já era só meu.
E onde tu foste perdendo
o nome das histórias que foste fazendo
E te esqueceste que eu também era tua
Nas vielas doentes,.cansadas, dementes da tua Lua
E a minha saudade antiga,
a tal que podia ter sido minha amiga,
Em vez de vir em meu socorro
E lamber-me a ferida como um cachorro,
Espetou-me uma faca nas costas
E, das feridas a sarar, arrancou as crostas.
E hoje, ontem, sempre que eu penso em ti,
Dói-me uma dor nova que parece que nunca senti
E em vão, tento sempre engolir
O monstro que cá dentro me tenta ruir.
Hoje, fui lá, aquele lugar duvidoso.
E sentei-me no granito do teu repouso.
Voltei a engolir por dentro o monstro
Com um ódio que eu nunca mostro.
Abafei-lhe a tempo o grito,
Engoli litros de sangue infinito,
Queimei-lhe o corpo que tem, o maldito
E soltei o meu cabelo preso, aflito.
Depois, sonhei a sorrir que me voltavas a fazer tranças
Lá, no lugar onde eles me juram que tu descansas.

ERA UM TALVEZ

Era uma vez
Uma certeza que foi apenas talvez
Uma dezena que não chegou a ser dez
E uma mãe que pariu sem gravidez
Era uma vez
Uma neblina cheia de nitidez
Um sobretudo a revelar a nudez
De um sem-vergonha corado de timidez
Era uma vez
Um devagar com.pressa de ser rapidez
Uma solteira a chorar viuvez
E um dia negro do mais claro que se fez
E um talvez...
O tal talvez...
Que, por sábia estupidez,
Por tão louca lucidez,
Não quis ter o que quis ter,
Não quis ver o que quis ver,
Só para poder, enfim, ser
A tal certeza outra vez,
Quando chegasse a sua vez.

PROMESSA

Para a Elisabete:
Fiz-te, há tempos, esta promessa
Mas esta vida, sempre com pressa,
Empurrou em frente os dias
Com ridículas ninharias
Que não chegam a ser nada
Quando olho a tua estrada.
E as palavras prometidas
Ficaram mudas, entupidas
Durante horas demais e compridas.
Até que ontem me lembrou,
Me chamou, me gritou
Que amanhã nunca chegou.
Procurei a tal justiça
Que se pede à consciência,
Como quando vamos à missa
À procura de inocência.
Até que me veio à memória
Coisa sem fim e sem idade,
Uma espécie de vitória
Do poder da eternidade:
Uma doce e vingada verdade
Feita moeda de troca:
Esse sem-fim de bondade
Que tinha o sorriso da tua boca.
E, por isso, tenho a certeza,
Tanta como hoje tenho a tristeza,
Que é por causa desse sorriso,
Esse tudo que nos resta,
Que lá no tal do paraíso,
Hoje o dia é de festa.
Porque um sorriso como o teu,
Tão perfeito desenho de Amor,
Conquista, quando nasce, o Céu,
Apesar da nossa dor.

RAMOS

Todos os dias os números do medo aumentam
Todos os dias há mortes que nos atormentam
Todos os dias as noites não dormem, lamentam
Todos os dias os dias já mal se aguentam.
Mas eu sei ...mais até do que ouvi dizer
Que todos os dias são dias que podem vencer
Sei de fonte segura esta minha verdade
Desde que a vi romper cura na enfermidade
Tão morta parecia, como as outras que havia
Tão coisa queimada, tão resto de nada
Mas do nada que tinha ela estendeu um membro
A lembrar um milagre nascido em Dezembro
No asfalto queimado, esgotado de fim
Rompeu bravo aquele ramo de pereira-jardim
E no lugar onde a vida já não queria ser
Ela lembrou à vida como era sobreviver
Hoje é a árvore mais bela que eu alguma vez vi
E por causa dela, a morte à janela eu quase esqueci
Por isso, estendam o braço ao céu com confiança
E agarrem a nuvem onde está escrita a Esperança.
Porque por cada folha viva a romper no asfalto
Nós temos a escolha só nossa de gritar bem alto
"Hei de ser outra vez maior do que eu me lembro
Como a árvore teimosa que sobreviveu setembro."

LUFADAS

Eu sou desastrada,
Tropeço em tudo,
Por tudo e por nada.
E quando me levanto,
Custa-me tanto ,
que, qual não é o meu espanto…
eu, já de pé no meu canto,
ofereço o tal pranto às pedras da calçada.
Eu sou tão exagerada !!!
Sou uma pessoa débil, uma pessoa falhada
A mais doce rabanada
Meses depois da Consoada
Alegremente e conscientemente,
Totalmente e dente por dente
E, por mais que eu tente,
Débil, quase doente,
Sempre quase suficiente
E quase sempre acabada…
Não sei nada
Nem assinar um cheque
careca, de hipoteca ou mesada ,
Eu não sei tratar de nada
Só sei escrever umas letras
e até essas são só tretas
Sou perfeita
Sou perfeita
E, quase gaga,
Sou perfeita mente desastrada
(Ai Natália, quem me dera
Essa tua tão fresca lufada…)
partir das "letras" d

COVID(A)

E se, de repente, afinal, fosse mentira?
E se, afinal, a morte não matasse a lira?
Se esta doença, que mata sem licença,
Esta peste que nos veste, de Leste a Oeste,
O medo em segredo de poder morrer cedo,
Se ela fosse, afinal, mera dor específica,
Que não chegasse a ser terrífica
E fosse quase boa, quase pacífica
Pelicula de ficção científica?
E se, afinal, fosse mentira
E a tal condenada lira
Estivesse viva como quem respira
Em vez de asfixiar às mãos de uma vampira?
E se fosse tudo, quase tudo, mentira?
Quase tudo!.. menos a verdade
De, afinal, sabermos ser todos irmandade?
De não termos necessidade de tanta necessidade?
E de sorrirmos à simplicidade
De ver passear o mundo sem velocidade?
De descalçarmos os pés da comodidade
Para pisarmos verdes novos de autenticidade?
E rirmos às gargalhadas daquela voracidade
Que tinham os dias antes sem idade?
E se, afinal, for mesmo verdade?
Que respirar fundo não tem de ser uma saudade?
Que um vizinho, afinal, tem nome: Amizade?
E que o tempo afinal tem tudo, até longevidade.
E se for verdade? E se for mesmo verdade?
Que a vida… ai a vida… é Eternidade?
Se quase tudo fosse mentira
Menos a verdade que ainda nos suspira
Que infinito este segundo!
Que admirável este mundo!
Que inofensiva esta ferida!
Que maravilhosa esta vida!

OITENTA

Fez oitenta, o meu “velho”
E apesar de parecer tanto,
não se quebra o tal encanto
Que ele tem em frente ao espelho.
É uma espécie de magia
Com laivos de Geologia
Um terramoto perfeito
Com epicentro no peito.
Um vulcão feito da vontade
De se rir da própria idade
Como se a única verdade
Fosse aquela afinidade
Que ele tem com a eternidade.
É uma branda teimosia
De ver nascer cada dia
Com a mesma harmonia
Que em criança ele conhecia.
E apesar de ter saudade
Dos que já esgotaram a idade
E até da melancolia
De ver morrer tanto dia,
A verdade é que a magia
Que ele tem, que vem de dentro
Constrói-lhe uma fortaleza
Onde, às vezes, eu também entro:
Uma indestrutível certeza
De que a eterna grandeza
É este viver, viver, viver
Sem ter medo de morrer.
O meu velho fez oitenta
E em vez disso ser tormenta
Dobra o Cabo Bojador
Todos os dias com Esperança
Todos os com Bonança
Todos os dias com Amor.


17.10.18

Não queiras que gostem de ti
Limita-te a ser
Quando abres os braços,
Quando estendes as mãos,
Eles não querem abraços.
Nem ser teus irmãos.
Eles não querem saber
Eles preferem sempre ver
Aquilo que tu não tens para lhes oferecer.

Quando, de repente, deres conta,
Quando tu deixares de ser montra,
Vão esquecer a tua graça
E inventar-te uma desgraça.
E até os que pensavas que eram teus
Vão procurar em ti defeitos que são os seus,
Vão se fartar de ti, vão-te evitar,
Vão se cansar de te gostar,
E vão procurar qualquer defeito
Que entorte o que tu tens direito.
Vão querer uma novela
Que possam contar à janela
Um episódio sobrenatural
Sobre a tua vida, afinal, tão banal
E tu... que gostavas deles por serem teus,
Com todos os defeitos que já eram os seus,
Vais doer onde magoa mais,
O lugar que envaidece os teus pais,
A tua herança genuína,
Aquilo que é mais teu:
A tua inocência de menina
E o beijo que a tua avó te deu.

Não queiras agradar ninguém
Faz amigos por dentro,
lá onde não entra ninguém.
Tu não precisas que gostem de ti
Não precisas que te vejam
Mesmo aqueles que não te beijam,
Nem que entendam o que em ti mereceu
Aquele beijo que a tua avó te deu.

Deixa... Limita-te a ser.
Tu também nada forçaste para o merecer.
Nem ela te beijou para o mundo inteiro ver.

Há uma mesa ao fundo, no café do meu bairro, que gosta de me magoar.
Hoje em dia, é mais moderna. Talvez, até mais confortável, mas muito menos agradável e, apesar de remodelada, é hoje uma mesa cheia de nada.
E, quando eu entro no café, a mesa é a primeira que me vê.
Olho para ela quase zangada, por ela estar feliz cheia de nada.
E ela insiste em me provocar com memórias doces antigas de quando ela se sentava nela - a minha avó e as amigas.
E eu entrava a correr, muito antes de ser tempo de a minha avó morrer.
Ia direita a ela, a esta mesa ao fundo, ao pé da janela.
E sentava-me com confiança. Com essa imensa segurança de ter de ser apenas e só criança.
Os meus pés ainda não chegavam ao chão, quando comecei esta adoração. Esta velha delicadeza de me sentar no lugar que tinha para mim esta mesa.
Ou de entrar no café e olhar lá para o fundo, bloquear o resto do mundo e correr com absoluta certeza do meu lugar feliz naquela mesa.
Adorava ouvi-la falar e tentar adivinhar que alquimia de amor ela ia nesse dia cozinhar.
E esperar pacientemente, no meu cabelo uma mão quente: metade doce, metade arreliada, a dizer: "Estás toda despenteada!".
E, hoje, quando entro no café, tento ignorar com frieza esta tal antiga mesa.
Mas não sei o que me empurra o olhar, nem por que ele vai sempre lá parar.
E ela lá está, irritante! Provocadora e pedante.
Com modos de realeza, a infeliz e inútil mesa.
Porque mesmo cheia de gente, ela está para sempre vazia. Como uma espécie de anemia. Que nos leva do sangue a cor. E da vida, um umbilical Amor.
Apesar de cheia de gente, ela nunca mais será confidente da paixão imensa que eu tinha por esta avó que a minha.
...
Há uma mesa, ao fundo, no café do meu bairro, que gosta de me magoar.
Só porque lhe sobreviveu. Só porque continua a ali estar.


27.5.18

DEFEITOS



Nasci com defeito.
Era invisível.
Um nevoeiro.
Cobarde à espreita, sorrateiro.
Porque eu nasci inteira e bonita
Com vontade de chegar num pulmão que grita.
Tinha os dedos todos, orelhas catitas,
Nariz de botão e pestanas infinitas.
Uma menina por oração
E bonitinha por gratidão.
Desejada e festejada,
Como se a partir de mim... não importasse mais nada.
Era perfeita...
Uma paixão, 
Um tesouro.
Bochechas de algodão. Sorriso de ouro.
Mas cheguei com defeito.
Um defeito escondido. Criminoso inibido.
À espera de me ver crescer,
Só para um dia me vir dizer
Que eu, afinal, nunca haveria de ser
A princesa perfeita que todos viram nascer.
Apanhou-me de surpresa, o desgraçado.
A mim e a todos os que algum dia me tinham amado.
Tentei esquecer-me do que ele fez.
E de cada vez que consegui,
Ele voltou outra vez.
Como agora.... que quase o tinha esquecido...
Mas ele, com a maldade típica de um bandido,
Voltou para me esclarecer
Que é dele e não minha a vida que eu posso ter.

PEDAÇOS DE TI



No tempo em que sabias
Toda a vida de cor
Aquilo que vestias
A idade que tinhas
E o teu único Amor.
O lugar que guardava
As luvas de cetim
E o olhar que brilhava
Quando olhavas para mim.

No tempo em que sabias
Contar de dez a mil
E o nome da rua
Que um dia foi tua
No teu bairro infantil.
E o nome de todos
Os que viste nascer
E as canções que cantavas
Para os adormecer.

Seu eu soubesse fazer-te voar
Até cada pedaço de ti
Levava-te ao primeiro lugar
Onde eu te conheci
E lá onde tu sabes quem sou
E onde estão aguarelas de ti
No teu colo havia de guardar
E no teu avental remendar
O tempo para ti.

Conta-me outra vez como aprendi a andar
Diz-me quantas vezes eu caí
Ensina-me mais uma vez a cantar
E eu prometo cantar só para ti
Só para ti.

Seu eu soubesse fazer-te voar
Até cada pedaço de ti
Levava-te ao primeiro lugar
Onde eu te conheci
E lá onde tu sabes quem sou
E onde estão aguarelas de ti
No teu colo havia de guardar
E no teu avental remendar
O tempo...
O tempo só para ti.

em: "Nem Tudo o Tempo Levou"

GUIÃO





Está quase a chegar o dia...

Escrevi uma história,
parte feita de fantasia,
parte feita de memória.

Tem cheiro a coisa meiga
parte feito de açúcar
parte feito de manteiga

Tem umas pitadas de sal
algumas, espalhadas em rimas
outras, bordadas num avental

E tem um golfinho...
Daqueles que traz o mar
Quando a Esperança, por carinho,
Faz um rio inteiro acenar

E tem uma neta apressada
Que espera o tempo que for preciso
Porque o tempo não pesa nada
Quando se espera um sorriso

E agora, desta história que escrevi
Está quase a chegar o dia...
Parte feito de fantasia
Parte feito de avó Maria.

TRICANA


Fui passear nas ruas que, um dia, foram dela...
Encontrei-a melancólica, sentada numa viela,
De cântaro a descansar no regaço,
Com a saudade debaixo do braço.
E a cantar um fado em segredo
Com os olhos a chorar o Mondego.

RUCA



Não sei distinguir, perdão!
O afecto que eu sinto não tem "mas", nem "se", nem "senão".
Não tem cor, seja ela clara ou escura,
Nem tonalidade, nem nuance,
Nem morena sexy, nem loura burra
É coisa sem preconceito, sem hierarquia.
Não tem idade, não tem sexo, nem a tal orientação que o guia.
Não tem dinheiro, nem a falta dele.
Nem Senhor Doutor, nem a mulher dele.
Não tem Engenheiro, nem Sr Professor.
Nem Vossa Excelência, nem a vénia do favor.
Às vezes, o meu afecto tem pele, tem mãos, pernas e rosto.
Outras vezes, ele tem o pelo, o focinho e as patas de quem gosto.
Por isso, quando eu sofro,
A minha dor não escolhe ser "equilibrada"
E chora os vazios todos que me ficam sem nada.
Portanto,
Não me chamem louca, doente, não me chamem maluca
E deixem-me chorar hoje, amanhã e sempre que me doer
O dia em que partiu o meu amigo Ruca.






MATERNIDADE




Tenho um filho, sim.
Eu também!
Quem disse que eu não podia ser mãe?
Tenho um filho, sim, que é em tudo igual
Aos filhos das mães paridos de parto natural
É pequenino, o meu menino,
Mal se via quando nasceu
Mas todos os dias ele fez magias
Aqui, no ventre vazio que o recebeu
Tem pele suave, sensível, tão frágil, tão delicada...
E um corpo que parece que não vai resistir a quase nada
Mas é no vento secreto que é feito de afecto
Que este meu menino deixa de ser franzino
Para ser lobo valente, pronto a fazer frente
A vento nefasto que serve de pasto
Aos que comem o alheio
Em vez de cultivarem centeio.
A este meu filho-destino,
Meu rico menino,
Basta uma montanha de mimo
Com um punhado de gente feliz lá no cimo
Duas colheres de Sol da manhã
Duas pitadas de colo da mamã
Risos a gosto, lágrimas q.b.
Como as que chora a vida quando nasce um bebé
Porque este meu filho umbilical
Nascido, ele também, de parto natural,
Vem do lugar de onde a Verdade sai
E é de lá que lhe vem o brilho.
O brilho do meu rico filho...
Vem do pai!

DESCANÇO




Fui lá...
Onde dizem que se descansa.
Ajeitei-te a jarra, com a raiva de quem já não te agarra.
Afaguei-te as flores com inconformado desprezo pelas cores
E rezei-te por dentro o meu egoísta e mudo lamento.
Virei-te as costas, pesada. 
Com esta dor ainda mais magoada. 
Voltei velha abandonada, 
Mesmo com a minha mãe de mão dada... 
E chorei uma espécie de nada
Com estas rugas sem esperança,
De quem nunca mais volta a ser criança.
Lá! Onde dizem que se descansa...

VERDES





No céu, eu vi o sol cegar
O dia fechou de medo o olhar
E o ar sufocou sem conseguir respirar
Mal tive tempo de guardar
Os verdes da serra e os do pomar
Quem dera eu agora os soubesse pintar

O campo onde eu descalço brinquei
O velho carvalho que eu tanto trepei
A quinta do avô onde só eu era rei
O melro, a raposa, o veado, a perdiz
E o serra da estrela de cauda feliz...
Acordou negro o lugar da minha raiz

Eu juro que vou conseguir encontrar
Quem comigo queira voltar a plantar
E juntos, o chão havemos de curar
Do cimo da serra nós vamos gritar
"É nossa esta terra, é nosso este lugar!"
E verde é a cor do que há-de vingar!

MAIS NADA!


Não me apetece mais nada!
Perdão!
Talvez esta seja uma declaração
Um tanto ou quanto descontextualizada.
Mas sinto-me ovelha tresmalhada,
Uma vaca perdida
Dissidente decidida
Da sua própria manada.
Ou água seca fugida
Da água que leva escondida
A serra na levada.
Como raposa-surpresa
De inesperada delicadeza,
Que vem pedir, em vez de roubar
A fruta que é do pomar.
E, de manhã, ao acordar
Ou à hora do jantar,
Apesar da fome ter certeza
Rejeita uma certa natureza
E pede, em vez de roubar,
A comida que vê na mesa.
Perdão! Tem razão!
Foi infeliz a declaração.
A verdade é menos baralhada.
O que me apetece realmente
Não é de todo comovente
Nem tem sequer em mim precedente.
Apetece-me a décima terceira badalada.
E mais nada!
Não me apatece mais nada!


15.9.17


Sabes, Maria...
Não é por hoje ser o teu dia.
Mas pareceu-me, de repente, que o dia nasceu diferente.
Mais luminoso, com luz de antigamente.
Mais generoso, de um calor terno, sem chegar a ser quente.
Mais bondoso, com laçadas de flores a embrulhar-te um presente.
E maravilhoso. Glorioso. Sobrevivente!
A lembrar que os dias podem nascer assim sempre.
Para honrar quem a vida agradece, quem à vida não mente.
Pareceu-me, de repente...
Que o teu dia... também por ser teu, Maria...
Hoje nasceu diferente.

11.9.17

MANHÃS


É assim todas as manhãs...
O mesmo Sol no horizonte
Uma saudade a fazer ponte
E um lençol de nuvens, às vezes de algodão
Outras, de linho translúcido de ilusão
E às vezes, muitas...
Mais do que as que eu queria,
Nuvens cinzentas de agonia
E um baloiço...
Onde eu, sozinha, me agarro
Como ao vício de um cigarro
Para fingir a companhia
Que tinham os dias, quando eu me ria
Ou aquelas outras manhãs no horizonte
Em que eu não precisava de ponte
Porque era tão forte o teu Sol,
Tão brilhante, tão potente...
Tão flagrante, tão presente...
Que, inúteis, as nuvens não te faziam lençol.

8.6.17

ONTEM

Às vezes, apetece-me dizer: "Desculpa, Hoje, mas hoje não dá!"
Explicar-lhe: "Espera aí, não venhas já!
Há coisas que Ontem ainda tem para me dar.
Coisas que se tu vieres agora,
Ontem tem de levar embora.
Coisas que tu não me podes oferecer
Porque são as de Ontem ao entardecer.
Vá, Hoje, espera um bocadinho!
Não vês que ainda não fiz o caminho?
Não percebes que Ontem será sempre melhor?
Por muito que me dês, seja lá o que for?
Tem paciência, espera a tua vez.
Ontem deu-me coisas que tu não podes, nem multiplicado por dez!
Deus-me os dias no rio, os Natais, as férias e o mar
Cheios de toda a gente que tu, Hoje, nunca me sabes dar.
Desculpa, Hoje, não te quero mal.
Talvez um dia, também tu sejas especial.
Mas, por enquanto, falta-te o dom da Eternidade
Que Ontem oferece aos meus amores sem idade.
E falta-te aprender a minha saudade
Para te poder deixar chegar de verdade
É que, quando chegas, aumenta a distância
Da Felicidade que eu tinha em dias de criança.
Respeita o meu tempo, Hoje, tem paciência, tem dó.
Não te quero mal, nem te quero só.
Mas foi Ele, Hoje...
Foi Ontem quem ficou com a minha avó."